O estudo e o trabalho podem ser o melhor meio de detentos e egressos retornarem à sociedade
Discriminação, desemprego, rejeição da própria família, tudo isso são desafios que os ex-detentos encontram ao tentar retomar a vida cotidiana em sociedade. É necessário um processo de ressocialização, que deveria começar dentro dos presídios e é de grande importância para que não haja reincidência dessas pessoas ao crime e elas sejam reinseridas na sociedade.
Karine Gonçalves tem 43 anos. Foi presa por tráfico de drogas, enquanto ainda cursava o quarto período de Direito. Seu pai era empresário, sua mãe professora em uma escola particular, e com uma condição econômica e social privilegiada chegou a morar fora do Brasil, mas não conseguiu enfrentar os problemas familiares da separação dos pais.
Questionada sobre o motivo de seu envolvimento com a criminalidade, ela diz ser uma resposta muito difícil e não acredita em más companhias. “Depois que meu pai foi embora, que eu tive essa privação dele, procurei algum ambiente e não soube me adaptar, não soube separar as coisas… fiquei perdida e fui conhecendo o tráfico. A primeira organização criminosa que eu conheci foi uma torcida organizada. Ali a gente aprende milhões de coisas.”
Hoje ela é mãe de três filhos e seu marido foi morto por envolvimento com tráfico de drogas. Cumpre pena no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte. Ela relata o preconceito que sofre e acha comum que as pessoas fiquem “com um pé atrás”. Pelo fato de ter feito o curso de auxiliar administrativo com ênfase em recepção, está em regime semi-aberto, podendo trabalhar durante o dia na Defensoria Pública de Minas Gerais, retornando para o presídio à noite.
Organizações e projetos
Organizações e projetos do governo e da sociedade voltados para isso atuam na ressocialização por meio do ensino e do trabalho. Segundo a lei de execução penal (LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO 1984), é dever do Estado prestar assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa e de saúde ao preso e ao egresso. Essa assistência consiste, entre outros fatores, em reintegrá-los à vida em liberdade.
O Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp) é uma organização da sociedade civil que atende exclusivamente o sistema prisional e é mantida, principalmente, pelo poder judiciário. Esse é um dos projetos que mobilizam empresas em busca de oportunidades de emprego.
A Associação Mineira de Educação Continuada (ASMEC), organiza e oferece cursos profissionalizantes para os recuperandos e, posteriormente, procura encaminhá-los ao mercado de trabalho. “A gente acredita que a aposta da ressocialização se dá pelo trabalho. A nossa ideia é promover cursos livres e rápidos para os detentos e aqueles que já estão livres, os egressos”, afirma a presidente, Andrea Ferreira. A ASMEC conta com uma equipe multidisciplinar que procura soluções e saídas para essas pessoas não reincidirem.
O acompanhamento dos sentenciados começa na prisão e vai até o fim da pena. De acordo com a presidente da organização, isso dá segurança às empresas contratantes, “essa atividade de fazer esse acompanhamento tem aberto algumas portas. Minas hoje é o estado que mais emprega sentenciados no Brasil. O selo, que é um selo nacional, nós temos empresas aqui que já ganharam”.
Andrea Ferreira fala ainda do perfil dos presos; “hoje nós temos presos mais elaborados, presos que chegaram até o terceiro período de faculdade. Então, o que eu percebo? Que a gente tem que começar a entender o que está acontecendo lá atrás. Por que essa pessoa que tem perspectiva, que está no terceiro período, se envolve com criminalidade?”.
A organização “Minas Pela Paz”, apoiada por grandes empresas que atuam em Minas Gerais, promoveu nos anos 2009 a 2014, programas de inclusão social para egressos. Junto ao PrEsp, mobilizou empresas em busca de oportunidades de emprego, como explica Enéas Melo, gerente de projetos do Minas Pela Paz: “Uma vez que surgissem as vagas, nós encaminhávamos para o PrEsp, que tem todo o banco de dados dos egressos que buscam trabalho”. O projeto já foi encerrado, mas resultou em 548 pessoas contratadas.
A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) criou o Programa Pró APAC, que consiste em qualificar profissionalmente os recuperandos, prepará-los e inseri-los no mercado de trabalho. Até hoje foram mais de 5.800 certificações em cursos do SESI, SENAI e SENAC. O programa investe cada vez mais em parcerias que implementem e aumentem a eficiência de sua atuação, como é o caso de sua mais nova parceria feita com o SEBRAE, e busca expandi-las para todas as APACs. Contabilizando os números de presos e egressos beneficiados pela iniciativa junto ao PrEsp e as APACs, 1.495 deles acessaram o mercado de trabalho.
Karine participou de uma das iniciativas da ASMEC e expressa gratidão por isso. “Quando eles descobriram que por trás daquele meu perfil tinha uma pessoa com estudo, que falava outras línguas, apostaram em mim. (…) Foi uma injeção de ânimo”, afirma Karine.
O cuidado com as mulheres
O Pró APAC atende duas unidades prisionais femininas, dando uma atenção especial às mulheres de outras unidades. “A mulher encontra uma dificuldade maior para ser inserida no mercado de trabalho, além das condições mais desfavoráveis em relação aos homens, dentro da maioria dos presídios. Passam por situações complicadas e complexas, que envolvem a maternidade e outras questões ligadas ao universo feminino. Os presídios são um universo hostil, assim como para os homens, mas muito mais hostil para elas. Então a gente tem esse foco, tem essa atenção, esse cuidado especial no trabalho junto com as mulheres”, explica Enéas Melo.
Uma das preocupações das organizações que trabalham em prol da ressocialização dos presos é que haja uma desvinculação com o universo da cadeia. As experiências vividas nos presídios acabam gerando sequelas que os impedem de retomar a vida normal do lado de fora. O sistema quebra a autoestima, a dignidade do indivíduo.
Karine sentiu isso na pele, quando, em suas primeiras saídas da prisão, percebeu que não sabia mais atravessar as ruas com segurança, não reconheceu os lugares no bairro onde sua mãe ainda mora. Ela relata como a ASMEC foi importante para ela. “A ASMEC me abraçou, então a gente se sente acolhida, aumentou muito a minha autoestima, é importante! Lá dentro a gente é um lixo, você é chamada de lixo o tempo todo. Então, quando chega alguém que te abraça e te acolhe, você começa a acreditar. Realmente eu posso! Eu quero, eu posso, eu consigo”.
Resultados concretos
Andrea Ferreira, presidente da ASMEC, relata as dificuldades enfrentadas na realidade da ressocialização, como, por exemplo, a evasão nos cursos: “O processo tem que ter uma agilidade. Se você fizer um curso de seis meses, com certeza eles não vão ficar nem três. A evasão é certa”.
Os cursos oferecidos geralmente são de acordo com as demandas do mercado, mediante pesquisas, para que haja uma rápida contratação dos sentenciados e de acordo com o desejo e habilidades de cada um. Há uma preocupação também em que os cursos sejam atraentes, com material didático que prenda a atenção dos alunos e coopere no desenvolvimento intelectual e profissional.
Karine cumpre a pena. Está estudando, trabalhando e cuidando dos filhos. Para ela, cada pessoa faz sua própria escolha e isso foi uma lição. “Foi um aprendizado para mim, para o meu novo marido, para todo mundo”. Ela deve entrar em liberdade condicional em 2020, mas para ela isso é apenas uma formalidade: “Eu nem sei quando eu termino de pagar minha pena, pra te falar a verdade. Por que isso, depois que eu comecei a trabalhar, virou um mero detalhe. Eu venho trabalhar todos os dias, o meu foco é trabalhar e estudar. O que eu ainda tenho que cumprir, é só um mero detalhe”.
Dos planos que ela tem, terminar a faculdade é o principal e já se prepara para isso com o apoio de profissionais do presídio. “Nós temos duas assistentes sociais lá, maravilhosas, que não deixam a gente ficar sem prestar o ENEM.”
Ela se espelha no advogado Greg Andrade, que também é ex-presidiário, se formou em Direito e tem seu próprio escritório. Ele é mais um dos exemplos de pessoas que mudaram a realidade pós-condenação. Karine se arrepende todos os dias por ter se envolvido com o tráfico e afirma que sua transformação é de verdade. “A cadeia é como se eu estivesse em um campo de concentração; sou só um número. Aqui, na defensoria onde trabalho, eu sou a Karine”.
Matéria publicada na Revista Ponto e Vírgula, em abril de 2019.
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